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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Adeus a Milan Kundera, artífice de novas liberdades amorosas e políticas

Milan Kundera - Miguel MEDINA / AFP
Milan Kundera Imagem: Miguel MEDINA / AFP

Colunista do UOL

15/07/2023 06h00

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Seria fácil revelar Milan Kundera sob a luz de suas próprias palavras. Homem lúcido e hábil em sua retórica, deixou um sólido conjunto de reflexões sobre o mundo, a cultura, o romance, a história, uma suma de ideias que serviria com perfeição para elucidar sua obra. Mas Kundera era um homem complexo, não permitiria tal simplificação. Suas reflexões parecem explicar tudo o que ele escreveu, parecem expressá-lo com limpidez absoluta, mas o cerne de seu pensamento é uma recusa à explicação. Por isso lhe interessava a literatura, por isso se fez ficcionista esse sujeito tão dado ao discurso filosófico: para preservar no mundo seu mistério e seu fulgor, para que a experiência humana não se reduza a um punhado de ideias lógicas.

Tentar desvelar, então, o sentido dessa obra e desse autor torna-se uma missão complicada, cheia de armadilhas e erros prováveis. Talvez melhor seria calar e render-se às suas páginas, mas o caso é que morreu um grande homem, e nessa ocasião prevalece o costume de lhe dedicar algumas frases elogiosas. Kundera foi um escritor autêntico, coerente, encantador, capaz de deixar marcas perenes em seus leitores, sobretudo quando o leem com o espírito ainda jovem. Kundera inaugurou em toda uma geração o gosto pela profundidade, e de quebra ainda soube incutir em muitos o gozo da liberdade, tanto política quanto amorosa.

Sabia dotar o complexo de uma exata simplicidade, sabia buscar no simples uma oculta complexidade: eis o paradoxo com que o autor tcheco nos consome. O peso e a leveza, a luz e a obscuridade, a liberdade e o compromisso, a morte e a imortalidade, é nessas e em outras polaridades aparentes que Kundera mergulha seus personagens, sem que possam sair delas com qualquer resposta fácil. A única certeza que trazem é a "sabedoria da incerteza", aquilo que para ele constitui o aporte maior do romance ao mundo moderno, tão devoto de ideias fechadas. Ali naquele espaço ninguém nunca tem razão, apenas se confrontam impressões e olhares, e assim a vida se multiplica em possibilidades. "Por definição", Kundera dirá, "o romance é a arte irônica: sua 'verdade' é oculta, não pronunciada, não pronunciável."

É com a relatividade essencial das coisas humanas que o autor nos depara em cada uma de suas obras. Flagramos os seus personagens no instante decisivo de sua trajetória, o instante exato que lhes garante a existência literária. Tomas contemplando uma parede vazia sem saber se ama ou desama, se cede ao compromisso amoroso ou guarda sua tão prezada liberdade, um conflito que se desdobrará com riqueza em toda "A insustentável leveza do ser". A senhora Agnes acenando para um rapaz num gesto de pura juventude e graça, um gesto que suspende o tempo e assim antecipa, paradoxalmente, uma reflexão sobre a morte, em "A imortalidade". Pelo dilema moral nos aproximamos dessas pessoas, partilhamos sua angústia, nos irmanamos.

Talvez passasse por algum dilema também o autor que contemplamos. Bom leitor que sempre foi, Kundera devia se dar conta de quanto se privava de inovações formais, quanto preferia dedicar sua atenção a argumentos e tramas. A composição inteligente de suas obras, e o exercício fluido da reflexão existencial, supriram a carência de uma novidade formal, e os ganhos dessa decisão não foram poucos. Já sem o ruído e o assombro que marcaram o gênero por tantas décadas anteriores, Kundera foi capaz de retomar o romance em sua tradição de pedagogia dos afetos, mas agora para constituir afetos novos.

Tomas, Tereza, Sabina: nesse triângulo voltam a se encenar velhos dramas amorosos, mas agora adequados aos novos anseios libertários. Vemos desfilar pelas páginas tanto suas angústias quanto seus ideais, tanto sua justiça quanto sua impiedade, na construção legítima e falível de relações novas, menos marcadas pelas falsas certezas do passado, pelos dogmas do casamento e da fidelidade. Professor Avenarius: nesse personagem menos célebre do que deveria ser, propõe-se uma nova maneira de agir politicamente, a partir de uma intervenção audaz e poética sobre o estado rígido das coisas presentes, a denunciar o tédio e o conformismo em que vivemos.

Se acertam ou se erram tais personagens não importa, embora isso renda conversas das mais envolventes. Se Kundera chega a pertencer a um cânone contemporâneo, estando a ele reservada a imortalidade, talvez seja também uma questão sem importância. O caso é que ele soube cumprir o seu próprio desígnio de "descobrir o que somente um romance pode descobrir", sendo essa a "única razão de ser de um romance". E soube, como poucos, colocar em ação nos livros seu conceito de história, "impessoal, ingovernável, incalculável, incompreensível", história de que ninguém escapa, história em que estamos todos contidos.

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